quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Grateful Dead - "Europe '72"



...mas aqui, queridos leitores, eles criaram mágica.


Quem conhece o Grateful Dead sabe que sua longa trajetória pode ser resumida em uma palavra: espontaneidade. Seja em sua vertente mais experimental ou na faceta country explorada no início dos anos 70, os malfeitores californianos sempre estiveram mais à vontade na estrada que no estúdio, fazendo com que cada apresentação ao vivo soasse única, com um repertório que desfilava uma infinidade de canções, acompanhadas de jam sessions igualmente infinitas.

E justamente essa espontaneidade, louvada pelas centenas de deadheads – seguidores fanáticos do grupo, que consideravam o compositor, cantor e guitarrista Jerry Garcia uma espécie de guru –, era, em algumas ocasiões, sua pedra de tropeço. Quando o Grateful Dead subia ao palco, as harmonias vocais, a afinação dos instrumentos e a precisão das notas tocadas não pareciam estar bem em primeiro plano.

Acontece que, em 1972, dois anos após o lançamento da notável dobradinha ”Workingman’s Dead”/”American Beauty”, considerada o mais bem sucedido período do Dead dentro do estúdio, a americaníssima banda resolveu dar suas voltas pela Europa, em uma turnê gravada, empacotada e lançada sob a apropriada alcunha de “Europe ‘72”. E o que eu posso dizer com toda a certeza é que o velho continente fez muito bem aos cowboys psicodélicos de São Francisco.

No LP triplo, também lançado em CD duplo numa edição caprichada da Rhino, a banda soa coesa e, ao mesmo tempo, absolutamente natural, fazendo fluir um som livre e incrivelmente aconchegante. Existe alguma coisa misteriosa que permeia todo o registro; algo que não pode ser estudado nem planejado. Simplesmente era pra ser assim.

O disco começa com “Cumberland Blues”, que parece ter sido extraída de uma mina estadunidense no início do séc. XX. Aqui a canção adquire muito mais brilho que em sua versão original, assim como “China Cat Sunflower” que, unida à tradicional “I Know You Rider”, formam uma única peça de incrível impacto. As guitarras de Garcia e Weir desenham a música de modo a elevar a imaginação e o espírito do ouvinte a alturas nada seguras. O coro final nos trás de volta à terra firme, num pouso que causa imediatas saudades da viagem.

É impossível ouvir as rurais ”He’s Gone”, “Ramble On Rose” e “Tenessee Jed” sem cantarolar suas melodias por semanas a fio, ou não sentir fortes ondas de emoção com “Morning Dew” e “Looks Like Rain”, essa última lançada apenas como faixa bônus na já citada edição em CD. Pra levantar a poeira amontoada no solado das botinas de couro, temos “One More Saturday Night”, “Sugar Magnolia” e “Mr. Charlie”.

Como ponto negativo, só posso citar a enrolação presente em “Truckin”, “Epilogue”, “Prelude” e nas faixas bônus que sucedem “Looks Like Rain”, todas contendo aquelas jams arrastadas que perdem a atenção dos ouvintes... digamos... mais sóbrios. Nada que comprometa, contudo, o status de Um Dos Melhores Discos Ao Vivo Que Eu Já Ouvi Em Minha Vida que o fabuloso “Europe ‘72” conquistou, mesmo que sem muita pretensão.

E aqui vai uma dica do João: da próxima vez em que você estiver pegando uma estrada, sozinho em seu carro, tendo apenas o silêncio da madrugada como companhia, jogue uma moeda na jukebox, ajeite o chapéu e acenda seu cigarro de palha. Seja qual for seu destino, ele vai parecer ter chegado cedo demais enquanto o velho Dead estiver rolando nos alto-falantes.

terça-feira, 20 de julho de 2010

1972 - O apogeu do movimento Progressivo


Olá, amigos leitores do Quem É Esse Tal de João Lemmos?!

Hoje venho aqui apenas para divulgar um texto fundamental para minha formação musical, sem o qual eu não sei como seria meu gosto hoje em dia. O artigo, escrito por Cláudio Fonzi, foi disponibilizado originalmente no site Whiplash, podendo ser conferido no www.whiplash.net/materias/horizonteprogressivo/000215-yes.html (vale um page view). Com vocês, 1972 - O apogeu do Movimento Progressivo.

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Historicamente definido como surgido no ano de 1967, o estilo denominado Rock Progressivo permaneceu por alguns anos restrito praticamente à Inglaterra, através de bandas como Pink Floyd, The Moody Blues, The Nice e King Crimson.

A partir de 1970, muitas bandas inglesas foram surgindo, mas em outros países continuava havendo uma representatividade muito pequena, com pouquíssimos lançamentos fonográficos. O ano de 1972, porém, marcou o início da Grande Era Progressiva, com muitos lançamentos de altíssimo nível, não somente entre as bandas inglesas, mas também por diversas bandas de outros países, sendo que boa parte desses lançamentos pode ser considerada como a obra-prima de seus criadores.

Tais lançamentos proporcionaram também uma maior identificação do público em geral, o que terminou por posicionar vários discos Progressivos entre os mais vendidos. Assim sendo, para ilustrar tais fatos com maior detalhe e abrangência, segue abaixo pequena relação, acompanhada de breve descrição das principais obras editadas naquele ano, começando pela Inglaterra:


- "CLOSE TO THE EDGE": Praticamente uma unanimidade entre os fãs do YES, esta obra é admirada pela grandíssima maioria dos proggers e mesmo pelos não-apaixonados pelo estilo. Perfeito em todos os aspectos, é constituído por três maravilhosas sinfonias - "Close To The Edge", "And You & I" e "Siberian Khatru", todas de longa duração. Este trabalho marcou também o apogeu da formação clássica dessa banda, constituida pelos geniais Jon Anderson (vocais), Steve Howe (guitarras e violões), Rick Wakeman (teclados), Chris Squire (baixo e vocais) e Bill Bruford (bateria), no que possivelmente foi o mais virtuoso quinteto surgido na história da Música. A capa foi criada por Roger Dean, o mais importante capista Progressivo de todos os tempos. Em termos de vendas, obteve grande sucesso, atingindo pelo menos o 6º lugar nos EUA e o 9º na Inglaterra.


- "TRILOGY": Outra quase unanimidade entre seus fãs, é o mais coeso trabalho do infernal trio EMERSON, LAKE & PALMER. Contendo um total de 7 faixas, têm como destaques a belíssima suíte "The Endless Enigma", a balada "From the Beginning" e a magistral adaptação da peça erudita "Rodeo" (do compositor americano Aaron Copland), que recebeu o título de "Hoedown".
No aspecto vendas, atingiu a 7ª posição nos EUA e o 8º na Inglaterra.


- "THICK AS A BRICK": Indiscutivelmente, é a obra-prima da fantástica carreira discográfica do JETHRO TULL. Extremamente ousada para a época, esta obra se constituía em apenas 1 música, dividida em duas partes de mais de 20 minutos cada. Além disso, suas letras eram de uma audácia e ironia contundentes e sua capa (um verdadeiro jornal, com várias páginas, noticias de todos os tipos, horóscopo, palavras cruzadas, etc etc) de uma criatividade extraordinária. Criada pelo absolutamente genial Ian Anderson (flauta, vocais e violão), contou também com a presença dos excelentes Martin Barre (guitarra), Barriemore Barlow (bateria), John Evans (teclados), e Jeffrey Hammond (baixo). Tornou-se também um dos discos Progressivos mais vendidos até aquela época, chegando ao 1º posto nos EUA e pelo menos ao 9º na Inglaterra. Na extensa carreira discográfica do Jethro Tull, foi lançado também nesse ano, o esplêndido album duplo "LIVING IN THE PAST", misto de coletânea com inéditas de estúdio e ao vivo e produzido com maravilhoso capricho, com capa dura estilo "livro" e várias folhas internas repletas de fotos coloridas. A despeito de ser duplo, atingiu o 4º lugar nas paradas americanas.


- "FOXTROT": Este álbum contém, para muitos, a obra máxima do Rock Progressivo - a extraordinária suíte "Supper's Ready" e seus mais de 22 minutos. Repleta de variações melódicas e mudanças de tempo, é até hoje, uma das mais sofisticadas e imitadas obras da Música Moderna. Contendo mais 5 excelente músicas, este album marcou a fase áurea do GENESIS (consolidada definitivamente no ano seguinte, com o lançamento de "Selling England by The Pound"), sendo que a formação era absolutamente brilhante, com Peter Gabriel (vocais e flauta), Steve hackett (guitarras e violões), Tony Banks (teclados), Mike Rutherford (baixo, violão, guitarra e vocais) e Phil Collins (bateria e vocais).


- "PROLOGUE": Apesar de não ter tido o sucesso mundial das obras citadas acima, este é certamente um dos mais belos trabalhos da banda RENAISSANCE, tendo tido ainda o inigualável mérito de ter revelado ao mundo a angelical voz da "Musa Absoluta do Rock Progressivo", a cantora Annie Haslam. Este disco marcou também o início da formação clássica da banda, completamente diferente da dos dois discos anteriores. Em "Prologue", os companheiros de Annie Haslam foram Jon Camp (baixo e vocais), John Tout (piano e vocais), Terence Sullivan (bateria e vocais) e Rob Hendry (guitarra, bandolim e vocais), além das participações fundamentais de Michael Dunford (composições), Betty Thatcher (letras), Jim Mc Carty (não pertencia mais a banda, mas contribuiu com duas belíssimas composições) e Francis Monkman (tecladista do CURVED AIR, fêz uma breve mas fantástica participação no sintetizador VCS3, na faixa "Rajah Khan").


- "DEMONS AND WIZARDS" e "THE MAGICIAN'S BIRTHDAY": Respectivamente, 4º e 5º lançamentos do URIAH HEEP, estes álbuns representam o mais alto nível de qualidade que esta banda chegou, com a apresentação de um Hard Rock Progressivo dos mais brilhantes já vistos. Com ligeira superioridade para "DEMONS...", ambos foram executados pela mais importante formação que a banda teve, incluindo o vocalista David Byron, o tecladista, guitarrista e vocalista Ken Hensley, o guitarrista Mick Box, o baixista Gary Thain e o baterista Lee Kerslake. As capas foram de autoria de Roger Dean.


- "SPACE SHANTY": Único album da banda KHAN, é absolutamente espetacular, tendo marcado o alavancamento da carreira do guitarrista Steve Hillage, que daí partiu para integrar o GONG. Contou também com o talento do tecladista Dave Stewart, um dos líderes do EGG e que, posteriormente, esteve em bandas como o HATFIELD & THE NORTH.


- "SWADDLING SONGS": Único album do MELLOW CANDLE (muitos anos depois foi lançado a coletânea de inéditas "The Virgin Pophet"), é uma das jóias mais preciosas do Folk Progressivo, pois reúne melodias absolutamente encantadoras com belíssimos arranjos. Entre os músicos participantes, o destaque vai para as vocalistas Alison Willians e Clodagh Simmonds (que depois participou brilhantemente de OMMADAWN, obra-prima de MIKE OLDFIELD), o guitarrista David Willians e o percussionista Willian Murray (que também participou de OMMADAWN).


- "LADY LAKE": 2º disco do GNIDROLOG, é sua obra mais brilhante, tendo seus pontos máximos nas fantásticas composições "I Could Never Be a Soldier" e "Ships". Entre seus membros, destaque para os gêmeos Colin Goldring (já famoso pela sua participação no clássico "THE YES ALBUM", tocava guitarra, sax, gaita e vocais) e Stewart Goldring (guitarra e vocais) e o multi-instrumentista Nigel Pegrum (flauta, bateria, oboé e piano), futuro membro do STEELEYE SPAN.


- "LIVE IN CONCERT WITH EDMONTON ORCHESTRA": Gravado no Canadá em 18 de novembro de 1971, este album marcou o ápice da carreira Progressiva do PROCOL HARUM, constituído por Gary Brooker (teclados e vocais), B.J. Wilson (bateria), Chris Copping (orgão), Alan Cartwright (Baixo) e Dave Ball (guitarra), que apresentaram-se acompanhados por Coral e Orquestra, realizando bela fusão entre as linguagens Rock e Música Erudita. Aclamado pela crítica, obteve também grande sucesso de vendas, permanecendo por 20 semanas nas paradas americanas, e chegando a atingir o 7º lugar.


- "PHANTASMAGORIA": 3º album do CURVED AIR, não costuma ser considerado como sua obra-prima, mas foi de extrema importância por ter obtido excelente vendagem na Inglaterra (esteve entre os 20 mais vendidos) e confirmado a popularidade atingida pela banda quando do lançamento de seu 1º album, intitulado "Air Conditioning", de 1970. Além disso, foi o último disco de estúdio a contar com os geniais músicos Darryl Way (violino, teclados, percussão) e Francis Monkman (teclados, guitarra, percussão). Como última boa caracteristica, a presença de duas canções magistralmente belas, "Melinda (More or Less)" e "Marie Antoinette" que revelaram, mais do que nunca, a belíssima voz da vocalista Sonja Kristina.


Outros trabalhos de excelente nível foram:


- "THREE FRIENDS": 3º album do GENTLE GIANT e um dos seus melhores.


- "WATERLOO LILY": 4º trabalho do CARAVAN e um dos seus melhores.


- "FIRST BASE": Fantástico 1º album da banda BABE RUTH. Infelizmente, nunca mais conseguiram repetir o feito, lançando apenas discos medianos ou fracos, sempre distantes do estilo Progressivo.


- "BODKIN": Excelente trabalho Hard-Prog da banda homônima.


- "RED SEA": 2º e excelente Hard-Prog do WARHORSE, banda que contava, entre outros, com o baixista Nick Simper (ex-DEEP PURPLE) e Ashley Holt (futuro vocalista da banda de RICK WAKEMAN).


- "FLASH" e "IN THE CAN": Respectivamente, 1º e 2º albuns do FLASH, banda que contou com astros como o guitarrista Peter Banks (líder do grupo, havia recém-saído do YES) e o tecladista Tony Kaye (outro recém-saido do YES, participou apenas do 1º album)


- "ARGUS": A despeito de não ser um disco totalmente no contexto Progressivo, é uma das maiores obras-primas da história do Rock e merece ser aqui incluído. Nesta época, o WISHBONE ASH contava com sua formação original e entre eles estava o guitarrista Andy Powell, responsável futuramente pelo magnífico solo de guitarra na música "Ashes Are Burning" do RENAISSANCE e, como convidado, o tecladista John Tout, igualmente daquela banda.


- "BLACK SABBATH VOL. 4": Outro trabalho não totalmente Progressivo, mas com algumas faixas totalmente inseridas nesse contexto e uma qualidade geral absolutamente espetacular!!!


- "MADE IN JAPAN": Entre os discos ao vivo mais idolatrados do Rock, é um album duplo do Deep Purple, certamente o grupo de maior capacidade e ousadia, em termos de improvisos instrumentais, que já se viu na história do Hard Rock. Tais improvisos eram extremamente longos, podendo chegar ao ponto de transformar músicas de 5 e 6 minutos em obras de mais de 30, como no caso das excelentes "Wring That Neck" e "Mandrake Root". Para a turnê no Japão, porém, improvisos tão longos não aconteceram, pois alguns meses antes, o Purple havia lançado sua obra-prima, o magistral album "Machine Head", e por este ser puramente Hard, o caráter Progressivo dos discos e shows sofreu considerável redução. Apesar disso, "Made in Japan", é um trabalho que contém os tradicionais e excelentes improvisos instrumentais e que, aliados aos brilhantes climas de teclados do mestre Jon Lord, permitem perfeitamente sua classificação como um trabalho de Hard Progressivo.


- "ELECTRIC LIGHT ORCHESTRA - NO ANSWER": Primeiro trabalho da banda homônima (também conhecida pela simples abreviatura ELO), cujo estilo se caracterizou por interessantíssima fusão de sonoridades puramente roqueiras com violinos e violoncelos sinfônicos. Em seu 1º album, além do futuro lider, o vocalista e multi-instrumentista Jeff Lynne, o ELO contava com a presença do também muilti-instrumentista Roy Wood, ambos ex-integrantes do THE MOVE.


- "MATCHING MOLE": 1º e homônimo album do grupo formado pelo baterista e vocalista Robert Wyatt após sua saída do SOFT MACHINE.


- "OBSCURED BY CLOUDS": a despeito de sua excelente qualidade, é um dos albuns menos Progressivos do Pink Floyd (apenas algumas faixas o são) e nesse artigo não deve entrar como destaque. Lembremos, porém, que todas as músicas do futuro clássico "DARK SIDE OF THE MOON" já haviam sido compostas e eram eram executadas na maioria dos shows que eles deram em 1972. OBC Atingiu o 6º lugar nas paradas britânicas.


-"EARTHBOUND": Gravado ao vivo, possuía sofrível qualidade de gravação, sendo execrado pela maioria dos fãs do KING CRIMSON e pelo seu próprio lider, o guitarrista Robert Fripp. Hoje em dia, porém, após a excelente remasterização em CD, pode-se perceber que o show havia sido fenomenal. Apesar da má qualidade sonora, chegou a se situar entre os 8 mais vendidos em 72 na Inglaterra.


-"DAYS OF FUTURE PASSED": Pois é, quem percebeu que a data original deste clássico dos THE MOODY BLUES não tem nada a ver com a desse artigo, está de parabéns. Existe, porém, uma grande razão para que ele seja citado aqui e esta é a seguinte: no 2º semestre de 72, foi feita uma reedição nos EUA e esta obteve incrível sucesso de vendas, permanecendo por várias semanas nas paradas, tendo atingido, inclusive, o 4º e o 5º lugares por um bom período. Este caso, além de ser bastante inusitado, mostrou muitíssimo bem o grau de pioneirismo desta obra, criada 5 anos antes, mas absolutamente à frente de tudo que havia sido feito até então. No ano de 1972, os THE MOODY BLUES lançaram o album "SEVENTH SOJOURN", belo álbum de baladas, mas muito pouco ligadas ao Progressivo.


- "CAMEL ON THE ROAD 1972": Outro trabalho que poderia não estar aqui incluso, pois só foi lançado 20 anos depois. De qualquer forma, serve muito bem para ilustrar o alto nível qualitativo que esta banda poderia atingir e também o quanto o cenário estava efervescente, com inúmeras bandas surgindo.


- "MIKE OLDFIELD": Outro exemplo para confirmar o comentário acima está no disco "TUBULAR BELLS", verdadeiro marco na concepção, execução e produção de um LP. O esmero em sua produção foi tão grande que o processo de gravação/mixagem e fabricação demorou mais de um ano e por essa razão acabou sendo lançado somente em 1973.

sábado, 17 de julho de 2010

Almôndegas - "Almôndegas"


Por Haig Berberian

A internet tem sido o mais eficiente meio de difusão de novos sons para quem tem o apetite sempre aberto aos diferentes estilos musicais do mundo todo. Para os exploradores de tesouros musicais escondidos então, tal ferramenta parece ter sido enviada pelos deuses diretamente do Olímpo. Muitos internautas adoram “cavucar” o Rock ‘n’ Roll dos buracos e cavernas mais obscuros da Terra, usando e abusando da tecnologia dos tão infames programinhas de compartilhamento, tão acusados de tirar o ganha-pão das pobres gravadoras, mas, por outro lado, responsáveis por revelar inúmeras bandas e artistas a um público que jamais teria acesso a eles, levando-os, inclusive, a adquirir os álbuns conhecidos graças aos downloads ilegais. Irônico, não?

Não obstante, é sobre outra grande ironia que pretendo discorrer na resenha de hoje. Os protagonistas dessa história de contradições são um conjunto das longínquas terras de Pelotas – e peço maturidade, querido leitor – cujo nome revela o teor altamente descontraído e natural de suas letras e filosofia de vida: Almôndegas. Pra quem não conhece, essa foi a primeira banda de Rock/MPB dos irmãos Kleiton e Kledir, famosos posteriormente por sua carreira como uma dupla. E não, eles não tocam música sertaneja, para a tristeza de muitos e minha profunda alegria.

“Mas onde está a ironia nisso tudo?”, pergunta-se o curioso internauta. A resposta é simples: uma das mais fortes características do grupo gaúcho era justamente a profunda aversão ao progresso e à modernidade, incluindo, é claro, a tecnologia, meio pelo qual eu tive o grande prazer – e agora você também, espero eu – de entrar em contato com essa música tão rica e arraigada à cultura gaúcha.

O álbum já começa com uma ode à vida simples no campo, “Sombra Fresca e Rock no Quintal”, talvez a faixa que mais aceite o rótulo de “Rock Rural”, estilo atribuído aos Almôndegas por muitos críticos – embora, em minha opinião, elementos da MPB predominem no trabalho deles, ao menos neste disco de estréia. Assim como a primeira faixa, a terceira e mais genial composição do disco, “Teia de Aranha”, parece ter sido cunhada por JJ Veiga, tamanha a ojeriza provocada na banda por quase tudo o que pode ser conectado à tomada. “Sou humano, mas namoro um computador / O progresso engoliu a nossa paz / E a teia engoliu a própria aranha”;

Ainda nesse espírito, a faixa “Almôndegas” trata do mesmo tema, só que dessa vez de forma mais bem humorada, utilizando-se de linguagem caipira e lógica simples, do tipo “Pra quê comprar Lamborghini se tem perna pra andar?”. Confesso, leitor, que eu responderia a essa pergunta sem grandes dificuldades.

“Olavo e Dorotéia (Uma Louca Estória de Amor)” é outra composição que merece destaque. Uma canção de belíssima singeleza, apesar do título um tanto piegas – odeio essa palavra, mas contento-me com ela no momento. Digna de nota também é “Daisy, My Love”, mais uma letra sensacional do grupo, unindo espírito crítico a humor.

Poupo meus internautas do enfado de um texto deveras longo – a recente profissão de publicitário vem me ensinando a importância da síntese – e já me despeço por aqui. Recomendo fortemente o álbum a quem deseja um pouquinho de cheiro de mato e bosta de cavalo impregnado nos muros de concreto da cidade, mesmo que somente pelos breves 33 minutos de duração do disco. Ou, se o ouvinte for um pouquinho espírito de porco, colocará o bucólico disco dos Almôndegas para tocar em seu “Lamborghini”. Prometo que não conto nada pro Kleiton. Nem pro Kledir. Até a próxima!

sábado, 20 de março de 2010

Coldplay - "Parachutes"


Ultimamente eu ando deixando um pouquinho de lado meu (lindíssimo, magnânimo, fantástico, excepcional) Prog Rock em detrimento de uma musica mais Pop. Os lamentos do Tears for Fears estão cada vez mais freqüentes em meus ouvidos, e o som requintado do Keane já ganhou mais uma execução em meu iTunes. Estava há um tempo, também, querendo re-ouvir “Parachutes”, o primeirão do Colplay, e a impressão causada em mim foi mais uma vez tão boa que eu não resisti em escrever uma resenha dedicada a ele.

Não pode ser desse mundo uma sucessão tão grande de musicas excelentes, formando a mais sublime trilha sonora para um mergulho na escuridão – acabo de me arrepiar ao som da guitarra de “Everything’s Not Lost”, mas deixemos a última música para o final. O álbum me parece um orgasmo de 40 minutos de duração. E não me venham com esse papo de “A Rush of Blood to the Head” que, por mais que seja um álbum notável e extremamente inspirado em vários momentos, não chega aos pés de seu antecessor.

“Parachutes” abre os anos 2000 de uma maneira que nem os mais mirabolantes fogos de artifício nas mais belas praias do planeta puderam fazer, trazendo em sua simplicidade um charme irresistível. O que dizer da beleza melódica do disco? Temas completamente inovadores, dez músicas de uma sonoridade única, assim como dez impressões digitais únicas que só saem de um único par de mãos. O Coldplay não é subproduto de nada.

Subverterei hoje meu paradigma de análise faixa-a-faixa devido à (louvável) homogeneidade sonora do trabalho. Terão espaço apenas as músicas mais excepcionais do álbum – “Yellow” not included – o que poupará o leitor do tédio proporcionado por uma resenha de três páginas. Aliás, aqui vai uma dica: desligue o PC e corra à cópia de “Parachutes” mais próxima à sua casa.

Para o internauta mais obstinado, aqui vão os destaques do disco: após a banda se apresentar ao ouvinte com a ótima balada semi-SciFi “Don’t Panic”, surge o primeiro momento realmente genial do disco, “Shiver”, que tive a oportunidade de conhecer – mesmo que tardiamente – por meio do jogo de PS3 Guitar Hero. Igualmente fantástica, “Spies” nos delicia com sua atmosfera melancólica de cinema noir.

Por mais que eu tente, não consigo segurar o sorriso ao ouvir os primeiros acordes de “Sparks”, uma lindíssima balada basicamente acústica, possuindo o brilho que faltariam nas baladas do disco seguinte da banda. O grande e – pasmem – inspiradíssimo hit “Trouble” tem como protagonistas o bem trabalhado contrabaixo na melodia principal da canção e a slide guitar floydiana no refrão, além da sensacional melodia vocal.

Tão breve quanto um salto a queda livre, a faixa título do álbum termina tão bela e repentinamente quanto começa, dando lugar às hipnóticas e belíssimas guitarras de “High Speed”. “We Never Change” serve de passagem para o grand finale, a apoteótica “Everyting’s Not Lost”, certamente uma das melhores composições não apenas do Coldplay, mas de toda a cena pop da década. Após uma introdução singela feita ao piano e cantada pelo fantástico Chris Martin, Jon Buckland oferece, gratuitamente, o riff mais simples e genialmente encaixado de todo o álbum. A banda nem termina de dizer adeus e já estamos com saudades. Fazer o quê se o disco é bom, né...

Está bem claro que eu falhei em minha tentativa de produzir uma resenha um pouco mais sucinta, com apenas comentários pontuais em algumas das faixas. Não faz mal, uma vez que todos já conhecem a prolixidade crônica desse senhor imaginário chamado João Lemmos. O que realmente importa aqui é a preciosidade de “Parachutes” e seu grande globo giratório amarelo, que a mim parece mais uma medalha de ouro reluzindo no peito de um medalhista olímpico. Ou no peito de um disco. Ou sei lá. Adeus.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Gentle Giant - "Octopus"




Certa vez Tom Jobim, um dos maiores nomes da MPB, se perguntou se o Rock evoluiria para o quarto acorde. Mal sabia ele que sua requintada Bossa Nova seria superada infinitamente em complexidade e riqueza de arranjos e timbres pelo infame estilo que, até então, apenas engatinhava. O Rock, filho maldito do Blues e do Country, mostrar-se-ia um adúltero de primeira, flertando com vários outros estilos e texturas alguns anos mais tarde, como o Jazz, o Bangra, o Folk, o Samba – alguém aí se lembra do Tropicalismo? – e a Música Erudita.

É nesse contexto, de casamento com os mais diversos estilos musicais, que surge o Rock Progressivo, tão martelado por mim nesse blog, e entre os maiores e mais influentes nomes de tal movimento está o genial grupo britânico Gentle Giant. Seu estilo único, abundante em harmonias riquíssimas e melodias pouco convencionais – para não dizer completamente absurdas, em alguns casos –, mesclou com brilhantismo o Rock e a Música Erudita, contendo, inclusive, boas doses de música medieval e renascentista.

O disco escolhido para a resenha de hoje é o quarto trabalho da banda, o reverenciado “Octopus”, de 1973. O Gentle Giant aqui atinge, talvez, seu máximo amadurecimento, estando completamente à vontade no terreno do “Baroque n’ Roll”. Afaste sua irmã adolescente desse disco, e nunca, sob hipótese alguma, mostre-o à sua querida vovó. Os efeitos podem ser extremamente drásticos. A apreciação desse álbum só será possível a mentes extremamente abertas, interessadas por manifestações artísticas ousadas e combinações perigosas. Ser louco também ajuda.

Sem mais delongas, vamos à análise da primeira faixa, “The Advent of Panurge”, um belo exemplo da mistura de influências eruditas de diversas épocas com uma sonoridade mais contemporânea, até mesmo funkeada em alguns trechos. A faixa possui um belo trabalho de polifonia vocal em seu início e em passagens diversas, sempre esbanjando requinte no que tange a instrumentação. É interessante notar os diferentes timbres de sintetizador – jamais ouvidos por mim em nenhuma outra música. O piano também está excelente.

“Raconteur Troubadour”, a mais atmosférica do álbum é, em minha opinião, a decodificação musical de sua capa, totalmente marinha. Em minhas divagações, sempre me ocorre a imagem de um capitão, no interior de seu navio, fazendo anotações em seu mapa – ou diário de bordo – com a lamparina escorregando em cima da mesa, com o balanço do barco; ou então imagino um polvo, lentamente movendo seus tentáculos nas profundezas oceânicas. Onirismo aparte, a faixa apresenta grande variação de timbres e atmosferas, nos transportando do alto-mar para um baile de gala, depois para um circo maluco e, finalmente, de volta para o navio. É, não teve jeito, essa música meche mesmo com minha imaginação...

A mais, digamos, “Rock ‘n’ Roll” do álbum, é a terceira faixa, “A Cry For Everyone”, possuindo um riff mais pesado do que de costume dentro da sonoridade da banda, mostrando sua diversidade e riqueza musical. A faixa, como não poderia deixar de ser, apresenta diversas variações rítmicas e, apesar de não constar entre as mais belas obras do grupo, possui arranjos bem trabalhados e inusitados.

Agora, leitor, prepare-se para uma obra-prima: “Knots”, um dos mais complexos trabalhos de polifonia vocal já ouvidos em todo a música pop. A obra pegará de surpresa o ouvinte menos experiente, e soará a ele como uma incompreensível maçaroca sonora. Aos ouvidos mais maduros, porém, será um sólido alimento, abundante e riquíssimo em arranjos e texturas, além de super original. É de dar nó na cabeça.

A faixa seguinte, “The Boys in the Band”, está entre as favoritas da maior parte dos fãs da banda. O Gentle Giant mostra que realmente não está de brincadeira, esbanjando talento e virtuosismo nos 4:32 minutos de duração da música, explorando os mais variados timbres de seu arsenal em uma massa sonora lancinante. Minha única crítica negativa à faixa é a excessiva repetição de temas que, apesar de excelentes, tornam-se um pouco cansativos. De qualquer forma, eu desafio qualquer banda a executar “The Boys in the Band” sem suar frio.

Depois de todo o exagero sonoro da última faixa, a banda alivia um pouco com “Dog’s Life”, predominantemente acústica e não tão inovadora, apesar de ainda apresentar arranjos e timbres bastante inusitados. Mesmo sem receber grande destaque, trata-se de uma bela faixa.

Dotada de singeleza e doçura pouco comum na discografia do gigante, “Think of Me With Kindness” abunda, ainda, em sons acústicos e baseia-se, principalmente em sua melodia principal, sem grandes voos instrumentais. Ainda que mais poderosa e classuda que a faixa anterior, “Think of Me With Kindness” mostra-se também comportada em relação ao restante do álbum.

O disco chega ao fim com a esquisitíssima melodia de “River” – completamente esquizofrênica – que retoma o clima aquático evocado pela segunda faixa. No meio da música, Gary Green ataca com um ótimo solo de guitarra, sustentado por acordes embalados e descontraídos executados por instrumentos tradicionais de Rock. A faixa possui, portanto, passagens mais inventivas e outras mais convencionais e funkeadas – que, sinceramente, chegam a agradar mais, nesse caso específico.

Considerações finais: “Octopus” é considerado um dos grandes álbuns do Rock Progressivo setentista, constando de qualquer lista dos melhores e mais importantes álbuns do gênero. Encontramos aqui uma banda madura que, por mais que escorregue em alguns pontos, consegue firmar-se definitivamente como uma gigante do estilo, ao lado de grupos consagrados como Yes, Jethro Tull e ELP – por mais que não tenham obtido o sucesso comercial das mesmas.

O álbum foi lançado com duas capas distintas: uma feita pelo lendário padrinho do Prog Roger Dean e outra produzida para o mercado norte-americano. Ambas são belíssimas obras, estampando – como não poderia deixar de ser – imagens de um polvo, representando muitíssimo bem a musicalidade do disco – principalmente a versão americana, a primeira das duas mostradas acima.

Então, caros leitores, a próxima vez que encontrarem um ensoberbecido boêmio, entusiasta dos grandes e renomados mestres da bossa, façam o favor de tacarem-lhe um Gentle Giant na cara para mostrá-lo que o Rock, há muito, não se resume a jaquetas de couro e um balançar de pélvis.

domingo, 17 de maio de 2009

Engenheiros do Hawaii – “¡Tchau Radar!”


Por Haig Berberian

Às vezes a gente pensa que determinados álbuns – daqueles que levaríamos junto se fôssemos a exílio para o Uzbequistão ou Marte – são igualmente considerados importantes para todos os outros fãs da banda que os produziu. Partindo dessa premissa, eu não conseguia entender a razão pela qual “¡Tchau Radar!”, um dos discos mais importantes da minha vida, está a tantos anos fora de catálogo, sendo achado – e a preços absurdos – apenas em sites como o Mercado Livre.

Conversando com uns amigos meus, também fãs dos Engenheiros do Hawaii, a mais controversa banda gaúcha, descobri algo que mudou meu modo de ver o mundo: eles não davam a mínima pro “¡Tchau Radar!”! Relutei em aceitar, bati o pé, impliquei, mas tudo que ouvi foram respostas do tipo “ele não está nem entre os meus 10 favoritos dos Engenheiros”. Será, oh céus, que meu disquinho de estimação não passa de um coadjuvante na discografia hawaiiana?

Bem, é claro que minha opinião a respeito do 11° trabalho de carreira de Humberto e seus capangas é completamente passional. Afinal, esse jovem redator que vos escreve teve tal álbum como porta de entrada ao universo musical dos Engenheiros, há 10 anos, quando o CD foi lançado. Lembro-me, ainda hoje, de assistir aos primeiros segundos do clipe de “Eu Que Não Amo Você” no Top 10 da MTV, e me perguntar “o que diabos seriam esses Engenheiros do Hawaii??”. Essa pergunta precedeu uma explosão mental tão expressiva que, até hoje, depois de ter passeado por vários estilos e tendências roqueiras, “¡Tchau Radar!” ainda configura em minha lista de álbuns mais preciosos.

Mas a obra não é feita somente de nostalgia. Esse é o trabalho de amadurecimento da formação Humberto, Lúcio, Luciano e Adal, grupo que perduraria somente por mais um registro, o matador “1000 Destinos Ao Vivo”, lançado no ano seguinte. Aliás, poucas vezes a banda soou tão poderosa no palco, provando a indubitável qualidade do grupo. Infelizmente o General Gessinger não agüenta ninguém ao seu lado por muito tempo – ou seria o contrário? – e no ano seguinte o exército de um homem só já contava com outra tropa.

“¡Tchau Radar!” já começa com uma porrada, “Eu Que Não Amo Você”, o carro chefe do disco. A tecladeira marcante, a guitarra destorcida e a batera agressiva dão peso à composição, um tanto fechada e escura, assim como a maioria das demais canções do trabalho. Destaque para o solo de guitarra, simples e preciso, dando à faixa exatamente o que ela precisava.

O disco segue com uma brilhante adaptação de “It’s All Over Now Baby Blue”, de Bob Dylan, recriada por Péricles Cavalcante e Caetano Veloso sob o título de "Negro Amor". Humerto ataca com sua gaita, na época não tão utilizada em canções da banda quanto na fase mais recente. A faixa, uma balada semi-acústica, foi extremamente bem produzida e esbanja bom gosto, agradando a gregos e troianos.

A estradeira “Concreto e asfalto”, direta e indomável, faz com que o ouvinte transporte-se imediatamente a uma BR qualquer. Letra e melodia dão show, e a instrumentação mostra-se extremamente competente, com timbragem impecável. A faixa traz consigo um ar nostálgico irresistível, e apresenta coesão perfeita com o restante do álbum.

A melancolia que permeia todo o disco encontra um de seus mais belos momentos em “Até Mais”. Poucas vezes Humberto Gessinger falara de amor tão abertamente, tão assumidamente, tão sentimentalmente até essa canção. Audição agradabilíssima.

“Nada Fácil” e “O Olho do Furacão”, as duas faixas seguintes, abordam temas mais pesados, como suicídio, depressão e desamparo, tendo reflexo em sua musicalidade obscura e febril. Ambas as faixas possuem letras fantásticas, em que HG soube dosar sua compulsão metafórica.

Retomando o tema de “Concreto e Asfalto”, a banda nos traz “Seguir Viagem”, apresentando, a exemplo dessa última, uma ótima orquestração e produção esmerada. Mais um grande momento do disco, lírico e poderoso ao mesmo tempo.

A próxima canção, “1000 Destinos”, outra balada muito elegante, apresenta ótimas letra e melodia.

Quebrando totalmente o clima e diferenciando-se substancialmente de todas as canções anteriores, a descontraída “Na Real” questiona forças transcendentais, misturando um tema de filme de terror e musicalidade western. Humberto diz ter composto a letra sob uma perspectiva literal, mas aprendeu a considerá-la como uma canção de amor, devido ao fato de vários fãs terem a considerado como tal.

O álbum segue com a beleza rara de “3x4”, uma belíssima homenagem de Gessinger à sua esposa. Diferentemente da roupagem “bobo-alegre” dada à canção no show acústico da banda, aqui “3x4” é revelada com sua real essência: vulnerável e sublime. A gaita e o violão envolvem a voz de maneira perfeita, gerando um momento intimista e sincero.

“Melhor Assim”, outro momento um pouco mais descontraído do trabalho, é um conselho de amigo para amigo. A faixa possui bom trabalho de guitarra e teclado, dispensando maiores comentários.

Eu não consigo pensar em uma conclusão melhor para um álbum de tamanha expressão que a releitura de “Cruzada”, composição brilhante de Tavinho Moura e Márcio Borges. O arranjo de cordas desarma qualquer ouvinte, banhando a canção de maneira tocante. É claro que há o dedo de um grande músico por trás uma tão magistral roupagem: nosso velho conhecido Jacques Morelembaum, para quem já rasguei a seda diversas vezes aqui no blog.

“¡Tchau Radar!”, em minha concepção, foi o último grande álbum de estúdio dos Engenheiros do Hawaii, antes de a banda entrar na veia mais modernosa dos álbuns-gerúndio “Surfando Karmas e DNA” e “Dançando no Campo Minado” e, posteriormente, afundar de vez no patty-pop normalzinho dos discos acústicos. Agora resta esperar e rezar para que Humberto apareça novamente com um trabalho de tão poucas vogais e tanta qualidade quanto esse.

sábado, 14 de março de 2009

Metamorfosi - "Inferno"


“Quando eu me encontrava na metade do caminho de nossa vida, me vi perdido em uma selva escura, e a minha vida não mais seguia o caminho certo. Ah, como é difícil descrevê-la! Aquela selva era tão selvagem, cruel, amarga, que a sua simples lembrança me traz de volta o medo. Creio que nem mesmo a morte poderia ser tão terrível. Mas, para que eu possa falar do bem que dali resultou, terei antes que falar de outras coisas, que do bem, passam longe.” *

O texto, parte da obra prima de Dante Alighieri “A Divina Comédia”, serve de perfeita introdução ao disco que tenho o prazer de resenhar hoje: “Inferno”, da banda siciliana Metamorfosi, lançado em 1973 pela gravadora Vedette. Baseado na primeira parte da obra do autor, o álbum é uma verdadeira viagem ao centro da terra – onde, segundo a ficção de Dante, encontra-se Dite, o diabo, mastigando Judas Iscariote, Bruto e Cássio – provocando no ouvinte um calafrio a cada passo dado através das diversas alas em que sofrem, eternamente, as almas pecadoras.

Cada composição do álbum dedica-se a uma punição para um pecado específico citado por Dante em seu livro, criando atmosferas soturnas e uma experiência sonora pesada. O trabalho de Enrico Olivieri com os teclados é algo simplesmente incrível, e a obra soa absolutamente italiana, com arranjos sobressalentes e momentos fortes, sempre pontuados pela voz poderosa de Davide "Jimmy" Spitaleri, fazendo com que “Inferno” soe como uma ópera trágica e macabra. “Deixai toda esperança, ó vós que entrais!” *

O álbum tem início a fabulosa “Introduzione / Selva Oscura”, uma das melhores composições italianas – dentro do Rock Progressivo – já ouvidas pelos fãs do estilo. A fúnebre introdução, feita no órgão e no cravo, apresenta pela primeira vez a igualmente fúnebre voz de Spitaleri, passando posteriormente a um riff encabeçado pelos sintetizadores de Enrico. A faixa, riquíssima em timbres, texturas e andamentos variados, é de explodir a cabeça, possuindo uma energia fora do comum.

O disco prossegue com a lúgubre “Porta Dell’Inferno”, emendando-se a “Caronte”, a entidade responsável pela travessia das almas pelo rio Aqueronte. A faixa emenda-se, repentinamente, a “Spacciatore di Droga” (traficante de drogas), em que a banda toma a liberdade de adicionar um novo pecado e sua devida punição à adaptação musical do livro. Na mesma faixa estão contidas também “Terremoto” e “Limbo”, proporcionando grande dinamismo na obra, com variação entre trechos melancólicos e explosões viscerais.

Romântica – e até um pouco melosa –, “Lussuriosi” vem condenar os praticantes da luxúria, jogando-os em um eterno redemoinho. A faixa, apesar de não agradar muito sonoramente, apresenta coerência com sua letra. Predominam tons agudos quanto a instrumentação – pois a voz de Spitaleri continua grave e severa.

Um momento curioso na obra é “Avari” (avarentos), começando com um órgão sóbrio, em que se canta uma melodia triste e, depois, explode em um poderoso riff de sintetizador, voltando à passagem de órgão e, novamente, ao sintetizador, transformando-se em uma animada – e breve – musica meio, digamos, “videogamística”!

“Violenti” começa com o mesmo acorde de órgão, a que é acrescida uma belíssima melodia de sintetizador, dando entrada aos vocais melancólicos. Logo após esse trecho mais calmo a faixa torna-se mais enérgica. De súbito, tudo é interrompido para dar espaço à parte mais interessante da faixa, mais escura e fria, desenvolvendo-se em uma ótima sequência de acordes em que o sintetizador monstruoso de Olivieri ganha vida novamente.

“Malebolge”, o círculo da fraude, é retratado musicalmente de maneira agitada e atormentada. A faixa emenda-se a “Sfrutattori”, basicamente instrumental, dando vazão aos vôos tecladísticos de Enrico. Uma parte mais calma e bastante dramática é inserida no meio da faixa, e mais uma vez há uma sessão da tecladeira impiedosa tão presente no álbum. Enrico executa um fantástico e frenético solo de piano, um dos melhores trechos de todo o disco. A faixa transforma-se em um Jazz constituído pela bateria bem trabalhada de Gianluca Herygers e as melodias do baixo de Roberto Turbitosi. Após essa parte, o bom e velho Progressivo volta com tudo, e o piano fominha de Olivieri toma conta da faixa novamente.

Em “Razzisti” a banda insere mais uma vez um pecado novo ao inferno: o racismo. Ótima faixa, bem pesada, dando um toque Hard muito bem vindo à obra. Um dos momentos mais interessantes é a inserção do hino nacional norte americano – de maneira destorcida – na faixa, numa clara denúncia à postura imperialista e opressora do país. A melodia é executada de maneira obscura, preparando o terreno para “Lucifero (Politicanti)”. Aqui encontramos uma característica muito marcante no livro de Dante: a denúncia política.

“Conclusione” fecha o trabalho tristemente, com todo o peso das cenas terríveis vistas na excursão pelos vários círculos do inferno. Na obra literária, o poeta Virgílio, o guia de Dante pela jornada, o conduz também ao purgatório e, finalmente, ao paraíso, fato não ignorado pela banda que, décadas depois, em 2004, lançou o álbum “Paradiso” que, em completo contraste com a obra aqui resenhada, é repleta de melodias doces e momentos alegres. Mas isso é assunto para outra resenha.

Eu não poderia deixar de citar a sensacional capa do álbum, um brilhante retrato da depressão. Predominantemente azul, a capa retrata almas sem rosto sofrendo, absolutamente solitárias e desamparadas, na vastidão fria de sua morada eterna. Sem dúvidas não é uma pintura que você quereria em sua sala de estar...



* Adaptação em prosa para a língua portuguesa feita por Helder da Rocha, disponível no site http://stelle.com.br